Omar Rached
Fernanda Manzano Sayeg
17 de outubro de 2017
O AFC e as relações com o setor privado
O governo brasileiro afirma que o AFC – Acordo de Facilitação de Comércio da OMC, que entrou em vigor em fevereiro desse ano, já foi quase que integralmente implementado no Brasil [1]. Contudo, essa afirmação destoa do que os operadores de comércio internacional têm observado.
O AFC, primeiro acordo multilateral celerado no âmbito da OMC desde sua criação, é um acordo direto, objetivo, simples de ler e entender, composto apenas de doze artigos. Foi pensado e negociado com vistas à redução da burocracia estatal por meio da inclusão da iniciativa privada na construção e formatação das regras locais do comércio internacional, o que levaria à uniformização dos processos formais existentes, redução drástica da intervenção do viés estatal e na simplificação da regulamentação correlata. Desta feita, não há margem para que os Membros editem ou interpretem seus artigos, cabendo a eles, portanto, o seu cumprimento na íntegra.
Consulta Pública SECEX/RFB viabiliza apenas a aclamação, o que prejudica a adequada e necessária manifestação das partes interessadas
Em 21 de setembro passado, a Secretaria de Comércio Exterior (SECEX), do Ministério da Indústria, Serviços e Comércio Exterior (MDIC), e a Receita Federal do Brasil (RFB) publicaram, no Diário Oficial da União, o Edital de Consulta Pública Conjunta RFB/SECEX Nº 1, de 20 de setembro de 2017[2], cujo tema é o Portal Único de Comércio Exterior, mais especificamente o novo processo de importação.
Por meio do referido Edital, o governo ofereceu 30 dias para que o setor privado se pronunciasse sobre um tema bastante complexo, que não recebe atualização relevante há vinte anos e que é extremamente importante para a economia do país. O processo de importação afeta boa parte da população do Brasil, como importadores diretos ou indiretos, bem como de todos profissionais que atuam na área do comércio internacional.
A referida consulta pública[3] alega que a proposta do novo processo de importação foi construída em estreita parceria com o setor privado, contudo, com o necessário respeito, não nos parece que existam elementos capazes de demonstrar que isso efetivamente ocorrera, nem tampouco informações detalhadas sobre o(s) destinatário(s) convidado(s) para, juntamente com os órgãos governamentais, desenvolver(em) o projeto.
Neste passo, em nossa opinião, sem a realização de uma plenária pública convocada para discussão e debate do tema, a Consulta Pública em comento nos parece inepta, vez que a unilateralidade do projeto se revela impositivo e não transparente, o que contraria o AFC.
A ineficácia da consulta pública SECEX/RFB
O objetivo do AFC é a facilitar o comércio internacional, tornando as operações rápidas, seguras e pouco onerosas. Uma das formas de lograr esses objetivos é com a implementação do conceito de Portal Único ou “single window”, como é conhecido em âmbito internacional. Segundo o governo brasileiro, o Portal Único deve reduzir os tempos médios do comércio exterior no Brasil em torno de 40%. Assim, o tempo médio para as exportações passaria de 13 para 8 dias e para as importações de 17 para 10 dias[4].
O AFC também estabelece mudanças no relacionamento entre intervenientes privados e autoridades aduaneiras, por meio da adoção de um novo modelo de interação participativa que antes não existia. São mudanças culturais com reflexos nos negócios e no dia a dia das empresas que importam e exportam. Uma dessas mudanças consiste na necessidade de consultar os comerciantes e outras partes interessadas sempre que os governos nacionais quiserem alterar a legislação de comércio exterior, com a finalidade de desburocratizar os processos de importação e exportação.
De fato, o artigo 2º do AFC determina que os governos nacionais consultem os comerciantes e outras partes interessadas sobre propostas de introdução ou alteração de leis e regulamentos de aplicação geral relacionados com a circulação, liberação e despacho aduaneiro de bens, inclusive em trânsito, os quais devem ter tempo adequado para formular seus comentários[5].
Se por um lado o Edital de Consulta Pública Conjunta RFB/SECEX Nº 1 concede um prazo exíguo para que o setor privado apresente suas sugestões à proposta de um novo processo de importação, por outro, basta ler o relatório da consulta pública[6] para observar que é muito difícil para os interessados apresentarem sugestões objetivas sobre o tema em apreço, já que o texto publicado não traz detalhes sobre as alterações propostas pelo governo no processo de importação.
A consulta pública não menciona como o governo quer realizar o objetivo de simplificar o processo de importação. Não diz como será a nova Declaração Única de Importação, mas apenas que ela deve trazer de melhorias. Não há sequer uma proposta que mencione quais informações serão exigidas no novo processo. Não especifica a configuração operacional da nova Declaração Única de Importação ou das licenças correlatas.
Nesse sentido, podemos mencionar, como exemplo, que, na página 27 da Proposta de Novo Processo de Importação[7], há menção ao Catálogo de Produtos, outra importante ferramenta que deve facilitar a prestação das informações sobre as mercadorias adquiridas do exterior. O governo menciona que nesse Catálogo ficarão registrados os produtos de interesse do importador e que, a cada nova operação, as informações já cadastradas serão aproveitadas, utilizando um número de registro específico do seu produto sem precisar prestar os detalhes novamente à fiscalização. No entanto, o governo não explicita quais são os campos e as informações que ficarão nos catálogos, nem como isso funcionará pragmaticamente.
Na mesma página, foi mencionado que a Declaração Única de Importação (DU-IMP) será integrada com outros sistemas públicos e também estará preparada para integração com sistemas privados a fim de evitar a redundância ou inconsistência na prestação de informações. Já na página 30, ao falar sobre o preenchimento da DU-IMP, é mencionado apenas que o importador deverá informar os dados relativos à mercadoria, à operação e à carga. Porém, não foram especificadas as informações relativas à mercadoria, à operação e à carga que deverão ser inseridas na DU-IMP. Tratam-se de informações importantíssimas para os agentes de comércio exterior que deveriam ser objeto da consulta pública.
Em vista dos exemplos acima, fica clara a dificuldade das partes interessadas em participar dessa consulta pública. Como alguém pode dar alguma sugestão sobre questões operacionais complexas e relevantíssimas que não foram especificadas em detalhes?
Sem que esse tema seja amplamente debatido em diversas reuniões plenárias, em ambiente público, devidamente convocadas e com a participação ampla dos atuantes no comércio internacional – como os importadores, despachantes aduaneiros, agentes de carga, consultores, transportadores internacionais, comerciais importadoras e câmaras de comércio – não chegaremos a ter processo eficaz de consulta.
O Edital de Consulta Pública Conjunta RFB/SECEX Nº 1 evidencia que a interação do governo brasileiro com as partes interessadas continua sendo a mesma na área de comércio exterior: o governo impõe um plano, consulta as bases políticas e todos outros tem a obrigação de acata-lo. Logo, o AFC não foi capaz de modificar a forma do governo brasileiro de interagir com os players interessados, como deveria ter ocorrido. É necessário escolher a forma de interagir com a sociedade por critérios objetivos, e não por mero alinhamento ideológico ou político.
O preço da má implantação, pelo governo brasileiro, de acordos internacionais de comércio
Existe um preço que se paga pela má implementação de acordos internacionais de comércio. Esse padrão é seguido de forma obsessiva pelo Brasil, que implementou muito mal os seguintes acordos: Sistema Harmonizado, Valoração Aduaneira, Defesa Comercial, Regras de Origem e Segurança de Cadeia Logística (SAFE Standards). Tais falhas têm um preço alto, que pagamos ao sermos isolados do comércio mundial, por não termos acordos relevantes de livre comércio e pela nossa participação pífia nesse setor da economia.
O Estado brasileiro tem seguido o mesmo caminho na implementação do AFC. Isso fica claro no Edital de Consulta Pública Conjunta RFB/SECEX Nº 1, que deveria trazer uma discussão aberta sobre os problemas gerados pelas exigências fragmentadas e erráticas da atuação governamental na área de comércio exterior. A proposta, logo na introdução[8], diz que não serão discutidos os procedimentos internos específicos dos órgãos anuentes no âmbito do processo do Portal Único. Mas se os benefícios da implementação do AFC consistem, em boa parte, na coordenação das agências intervenientes, existe alguma lógica nessa proposta de consulta?
Sem a coordenação normativa das agências governamentais, o novo programa do Portal Único é ilegal
Ao publicar o Edital de Consulta Pública Conjunta RFB/SECEX Nº 1, o governo brasileiro não se preocupou com o fato de que, para que o novo processo de importação pudesse funcionar, ele deveria estar alinhado com a legislação ordinária aduaneira. Para um observador mais técnico, o AFC apresenta um completo desalinho e até objetivo contrário ao nosso Regulamento Aduaneiro (Decreto 6759/09) e Portaria SECEX 23/11, colunas basilares do ordenamento jurídico na área aduaneira brasileira. Não seria exagero dizer que ambos não podem sequer coexistir em termos jurídicos, já que não são compatíveis. Manter as regras atuais pode gerar uma completa insegurança aos operadores de comércio exterior, porque os pontos de vista extraídos do AFC, de um lado, e do Regulamento Aduaneiro (Decreto 6759/09) e da Portaria SECEX 23, de outro, são completamente distintos, possuem objetivos opostos e em quase tudo se contradizem.
Qual a solução proposta pelos técnicos do governo? Que o sistema Siscomex simplesmente realize o alinhamento de objetivos do AFC ao processo empírico e à prática aduaneira, sem desregulamentar o direito aduaneiro brasileiro. Deixando mais claro, a proposta é substituir a desregulamentação dos intervenientes e forçar a coordenação aduaneira por intermédio de um sistema imposto a todos, que funciona com a programação de informática, suprimindo e substituindo a norma legal. Seria uma grande irresponsabilidade, mas confirmaria um padrão que o Brasil cumpre de forma regular: a má implementação dos acordos internacionais de comércio. Isso pode gerar uma grande quantidade de problemas para os operadores de comércio exterior e aumentar sobremaneira o número de demandas ao poder judiciário.
O fato é que nossas regras aduaneiras estão deslocadas do tempo e espaço. Não existe mais espaço para manter o atual arcabouço regulatório, seja na esfera das leis, decretos ou regulação administrativa. Isso requer tempo, estudo, debate, participação ativa da sociedade. Não discutir a conformidade das pequenas regras administrativas vigentes em face do AFC e atropelar o processo com um sistema informatizado podem criar mais problemas em vez de resolvê-los. Precisamos ter coragem e fazer uma autocrítica em relação às práticas arcaicas, cartelistas e opacas que permeiam nossa área aduaneira. Estamos viciados em inventar problemas!
Parafraseando o professor Samir Keedi[9], quem propôs essa consulta anda tendo sonhos estranhos e confusão de desejo com a realidade. Não se pode implementar um novo processo de importação fazendo uma consulta seletiva, sem definir as propostas de cadastro único, licenciamento no portal único, matriz de gestão de riscos, diferimento do pagamento dos tributos. A consulta não passa de retórica, não existe detalhamento suficiente para sugestões técnicas, o que contraria o sugerido pela OMC em relação à implementação do AFC[10].
Interação do setor público e privado ainda segue padrão corporativista fechado
O Brasil aprende de forma dolorosa o custo do apego à falta de transparência. Diversos políticos, incluindo a alto escalão da administração pública, estão sendo investigados pelo Ministério Público e Polícia Federal. Será que já não é hora de o Estado deixar de ser o principal atuante no comércio exterior e os comerciantes meros expectadores?
As instituições que coordenam o comércio exterior são arcaicas e não tratam o tema do comércio internacional da forma apropriada. Esqueceram que precisamos vender e comprar, isso gira a economia. Nossa Aduana, em sentido amplo, precisa de centralização, organização e simplificação. Precisamos de Portal Único e gestor governamental único, de preferência alinhado com o AFC, discreto, simples e eficiente.
O modelo da implementação da DU-E deveria ter sido seguido pelo governo como diretriz, por ter atendido aos requisitos e estar alinhado ao AFC. O mesmo não se pode dizer da DU-IMP. No quesito da interlocução, apenas uma aliança desempenhou papel representativo de quase toda a iniciativa privada no Brasil. O fato de existir, em reuniões, um único ponto de contato da iniciativa privada com o governo apenas para os associados e convidados, não condiz com os princípios do AFC. Não há dúvida que é mais prático para o governo, porém representa mais a vontade dos burocratas em não ouvir sugestões e críticas. Também se observa que os canais estão necrosados e afeitos à defesa incondicional das iniciativas governamentais, justamente o oposto ao programa do AFC.
Todos querem a mudança, mas poucos querem mudar – queremos mudar sem sair do lugar? Temos uma excelente oportunidade e, mesmo que a consulta seja aplicada e o plano for feito da forma proposta, já é um avanço. Mas não devemos nos contentar com tão pouco. O AFC alterou definitivamente o relacionamento entre o poder público e do setor privado na área aduaneira. É necessário colocar essa nova forma de interação em prática.
Podemos ser os protagonistas da mudança, aprender com o processo de debates e aprimoramento da norma, dos sistemas e das práticas, para poder, inclusive, notar desvios nos padrões que foram estabelecidos por todos envolvidos. Podemos contribuir para que regras e práticas que sejam construídas por meio de processos transparentes e participativos, como exige o AFC. Assim, lentamente, poderemos nos ver livres da pesada estrutura interventora estatal. Com isso, aumentaremos a eficiência da nossa aduana e ganharemos em competitividade no mercado internacional.
[1] O Brasil notificou a OMC informando que mais de 95% do AFC está implementado ao nosso ordenamento aduaneiro (notificação de categoria A).
Fonte: https://www.tfadatabase.org/members/brazil
[2] Disponível em: http://portal.siscomex.gov.br/destaque/consulta-publica-novo-processo-de-importacao/EditaldeConsultaPublicaConjuntaRFB_SECEXn1_2017.pdf.
[3] Disponível em: http://portal.siscomex.gov.br/destaque/consulta-publica-novo-processo-de-importacao.
[4] Vide http://portal.siscomex.gov.br/destaque/consulta-publica-novo-processo-de-importacao/20170918RelatorioNPI.pdf.
[5] “ARTIGO 2: OPORTUNIDADE PARA FORMULAR COMENTÁRIOS, INFORMAÇÃO ANTES DA ENTRADA EM VIGOR E CONSULTAS
1.1. Cada Membro concederá, na medida do razoável e de forma consistente com seu direito interno e seu sistema jurídico, oportunidades e um período de tempo adequado para que os comerciantes e outras partes interessadas formulem comentários sobre propostas de introdução ou alteração de leis e regulamentos de aplicação geral relacionados com a circulação, liberação e despacho aduaneiro de bens, inclusive em trânsito”.
[6] Disponível em: http://portal.siscomex.gov.br/destaque/consulta-publica-novo-processo-de-importacao/20170918RelatorioNPI.pdf.
[7] Disponível em: http://portal.siscomex.gov.br/destaque/consulta-publica-novo-processo-de-importacao/20170918RelatorioNPI.pdf.
[8] Página 6 da Consulta. Disponível em: http://portal.siscomex.gov.br/destaque/consulta-publica-novo-processo-de-importacao.
[9] Samir Keedi, o destruidor de mitos, no artigo “Mito do Brasil exportador natural“, publicado em 02/10/17 na Aduaneiras. Fonte: http://www.aduaneiras.com.br/Materias?guid=aefd4ce86ac9a7dbe2931945f9ac3bf2
[10] National Committees on Trade Facilitation: current practices and challenges – comerciantes devem ser ouvidos em nível legal e operacional para que o AFC traga os efeitos desejados. Fonte: https://www.tfafacility.org/sites/default/files/news/tfa_national_committees_trade_facilitation_web_e.pdf